A resposta à questão se depreenderá da consideração dos seguintes pontos
:
1. Deus quer, sem dúvida, que todos os
homens se salvem (cf. 1 Tim 2,4 e «P. R.» 29/1960,
qu. 2). Donde se conclui que o Criador concede a cada indivíduo humano os meios
necessários à salvação.
2. Tais meios são geralmente consentâneos com o
curso natural das coisas; já que Deus é o Autor das leis que as regem, Ele costuma utilizar as
criaturas para executar seus desígnios no mundo.
Por conseguinte, Deus se manifesta a todo
homem:
a) pelos seres visíveis que o cercam, seres
contingentes que só se explicam pela existência de uma Causa Absoluta, a qual é
Deus. O homem, portanto, usando de sua razão, mediante o principio de que
tudo que começa a existir tem uma causa, pode chegar ao conhecimento da
existência de Deus e de alguns dos seus atributos (Onipotência,
Sabedoria. Bondade, Justiça…);
b) pela lei natural, que no intimo de
cada consciência clama: «Faze o bem, evita o mal». Essa voz, anterior a
qualquer deliberação, é a voz do Autor mesmo da natureza. O homem que siga
sinceramente tal ditame, segue o bem, e, passando de bem finito a bem finito
(de ato bom, virtuoso, a ato bom, virtuoso), adquire comunhão cada vez mais
íntima com a Fonte de todos os bens e virtudes, que é Deus.
3. Além de se manifestar de modo natural
(pelas criaturas visíveis e pelos ditames da consciência), o Senhor Deus houve
por bem revelar-se aos homens de maneira sobrenatural, isto é, falando pelos
Profetas e por seu Filho único feito homem (Jesus Cristo).
4. A revelação sobrenatural foi munida de
credenciais a fim de merecer a aceitação inteligente e consciente dos homens.
Entre essas credenciais, registram-se os
milagres realizados por Cristo, dos quais o mais expressivo é a ressurreição do
próprio Senhor Jesus.
Pode-se dizer que todo o Cristianismo está
baseado na proposição da ressurreição de Cristo: «Se Cristo não
ressuscitou, vã é a vossa fé», escreve São Paulo (1 Cor 15,17). Ora a ressurreição de Jesus
deve ter sido um fato real, pois certamente o mundo no qual ela foi
inicialmente apregoada, não estava em absoluto predisposto a aceitar tal
fenômeno; ao contrário, os Apóstolos e discípulos de Cristo se mostraram assaz
lentos para lhe dar fé (tenham-se em vista S. Tomé, em Jo 20,25; os discípulos de Emaús, em Lc 24,17-23). Quanto aos pagãos,
sabe-se que consideravam geralmente o corpo como cárcere da alma, repudiando,
por conseguinte, qualquer hipótese de volta da alma à matéria após a morte do
indivíduo. Se, não obstante tal aversão, a notícia da ressurreição de Jesus conseguiu
implantar-se entre os povos do Império Romano, a ponto de se tornar o
fundamento de vinte séculos de Cristianismo, o bom senso exige que tal notícia
fosse verídica ou correspondente à realidade histórica; se não, facilmente
haveria sido desmascarada pelos adversários do Evangelho, que não eram pouco
numerosos; cf. «P. R.» 8/1957, qu. 1.
Entre as credenciais da Boa Nova, devem-se
notar outrossim os milagres que acompanharam a pregação dos Apóstolos
(cf. At 5,12-17);… também a surpreendente
propagação do Evangelho, doutrina da Cruz, num mundo corrupto e hostil, que até
323 perseguiu os cristãos…
Em suma, o Senhor fez que a implantação do
Evangelho no mundo fosse munida de testemunhos objetivos (que aqui não vão
minuciosamente explanados por não pertencerem ao tema da questão), testemunhos
objetivos suficientes para que até nossos dias a pregação de Cristo e da sua
Igreja possa ser inteligentemente aceita (e não aceita simplesmente de olhos
fechados, por motivos de rotina, ou por imposição de autoridade).
5. Dizíamos que a Providência Divina houve
por bem efetuar numerosos milagres nos primórdios da pregação do Evangelho.
Eram necessários em vista das circunstâncias nas quais ressoava a palavra dos
Apóstolos, pregando um Messias crucificado, «escândalo para os judeus, loucura
para os gregos» (cf. 1 Cor 1,23). Sujeitos às perseguições desde
os tempos do Imperador Nero (64-67), os primeiros arautos do Evangelho não
teriam conseguido resultado algum se não fôra a intervenção extraordinária de
Deus em seu favor.
Uma vez, porém, passadas as circunstâncias
dos primeiros tempos, a Providência não continua a suscitar os abundantes
milagres de outrora. Registram-se, sem dúvida, ainda hoje portentos que
confirmam a veracidade do Evangelho; tais são, entre outros, os que se
verificam em Lourdes, Fátima, nas canonizações dos santos, etc.; a Santa Igreja
faz questão de submeter os apregoados fenômenos extraordinários ao exame de
cientistas e teólogos, a fim de se certificar de que se trata de verdadeiros
sinais de Deus.
Os milagres, porém, sendo derrogações às leis
que o Criador sábio incutiu à natureza, não podem constituir o regime normal de
salvação para os homens: Deus, tendo dado, pois aos elementos, não lhes faz
exceções sem finalidade proporcionalmente importante; em tudo Ele observa
harmonia e consonância. Ora, para promover a conversão dos homens, existem não
somente as credenciais objetivas que assinalamos (principalmente a ressurreição
de Cristo, base de vinte séculos de Cristianismo), mas também os auxílios
invisíveis da graça dados aos homens que ouvem a palavra de Deus, para que se
convertam. Podemos estar certos de que o Senhor não deixa criatura alguma destituída
dos elementos necessários à salvação; para isto, porém, não precisa de fazer
milagres (exceções); a graça de Deus, mesmo no setor das coisas ordinárias, é
muitíssimo variegada em suas vias…
6. Deve-se mesmo dizer (quase paradoxalmente)
que, para quem não possui um ânimo sincero e dócil para aceitar os meios
ordinários de salvação, nem mesmo os meios extraordinários ou milagrosos servem de alguma coisa.
Sim; a alma mal disposta não se rende nem diante dos sinais mais retumbantes,
mas está sempre pronta a retorcer e anular o significado de qualquer milagre.
É o que o Senhor mesmo se digna ensinar no S.
Evangelho mediante a parábola do ricaço e do mendigo Lázaro (Lc 16,19-31): um homem, diz Jesus,
banqueteava-se todos os dias, desprezando um pobre e doente, Lázaro, assentado
à porta de seu palácio. Morreram o rico e o mísero… Após a morte, o gozador
experimentou tremenda decepção, consequente ao seu egoísmo. Em sua amargura,
então, pediu ao Pai, permitisse que Lázaro reaparecesse na terra para admoestar
os cinco irmãos do ricaço, precavendo-os contra semelhante desilusão. Do céu,
porém, recebeu a resposta seguinte: «Eles têm Moisés e os Profetas;
ouçam-nos!»; o que queria dizer: «… têm os meios ordinários de salvação, os
quais são suficientes». Insistiu, porém, o ricaço: «Mas, se alguém dentre os
mortos for ter com eles, arrepender-se-ão». Falsa esperança! A voz do alto
replicou: «Se não ouvem a Moisés e aos profetas, não se deixarão persuadir,
mesmo que ressuscite alguém dentre os mortos!».
Esta parábola de Jesus incute claramente a
todos os homens a necessidade de se aproximarem de Deus nesta vida, contando
com os meios ordinários da Providência, e não com recursos extraordinários. A
ninguém é lícito pretender receber sinais milagrosos de Deus para abraçar a
verdadeira fé; engana-se aquele que julga que, se o Senhor fizesse hoje em dia
mais milagres ou um milagre de alcance universal, todos ou quase todos os
incrédulos se converteriam. Quem resiste aos meios comuns de salvação, muitas
vezes não o faz porque careça de evidência objetiva para abraçar a fé, mas
porque criou hábitos e disposições morais que ele com sacrifício deveria
remover, caso um dia aderisse à fé; assim a paixão desregrada pode deter o
homem diante de qualquer sinal de Deus!
7. Acontece que a Providência Divina não faz
chegar a mensagem do Evangelho a todos os homens, permitindo que uns vivam na
idolatria e outros na heresia. — Tais homens, que, sem culpa própria,
desconhecem a verdadeira fé, podem, sem dúvida, salvar-se, caso observem com
toda a fidelidade os ditames da sua consciência, entre os quais é fundamental o
seguinte: «Faze o bem (todo o bem, que vires ser obrigatório) e evita o mal
(todo o mal, que vires ser proibido)».
Está claro que a tais homens o Senhor não
pedirá contas de uma profissão de fé e de observâncias religiosas que, sem
culpa própria, terão ignorado ou jamais terão conhecido autenticamente. Serão
julgados conforme a sua fidelidade aos ditames de sua consciência e poderão
conseguir a bem-aventurança celeste destinada a todos os justos (contanto que
perseverem rigorosamente de boa fé no erro, fazendo lealmente tudo que a
consciência lhes mande, até o fim da sua vida); cf. «P. R» 1/1958,
qu. 7.
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