As
peças do destino
Geraldo
Ribeiro de Sousa
Você já atravessou cego na rua? Alguma
vez parou o seu carro e desceu para ajudar uma dessas criaturas?
Isto mesmo: aqueles de bengala branca,
com olhos apagados, cinzentos, às vezes de óculos escuros, tateando na beira da
calçada, tentando adivinhar quando é que o trânsito vai parar para poderem
atravessar a rua sem serem colhidos pelos para-choques de veículos de
motoristas apressados e pouco solidários com cegos e velhos, sem falar nos
outros pedestres.
Pois é. Um dia contaram-me o seguinte
fato ocorrido em Belo Horizonte: Eustáquio transitava por uma das ruas mais
movimentadas da capital, a Rua Platina, no bairro do Prado, próximo ao Quartel
da Polícia Militar, quando viu na beira da calçada, do outro lado da rua, um
jovem cego, meio aflito, tentando atravessar a Rua Platina no meio do intenso
movimento. Nosso amigo não teve dúvidas. Parou o seu carro logo adiante, ligou
o sinal de alerta e até se esqueceu de fechar a porta. Lá se foi a ajudar
aquele cego a atravessar a rua. Na travessia trocou rápidas palavras com o cego
que lhe dissera:
- Hoje é um dia muito especial para
mim. Apesar do trabalho que dou às pessoas como no caso do senhor que está me
ajudando a atravessar esta rua, eu quero dar uma grande alegria ao meu pai. Vou
até àquela empresa ali, e, mencionou-lhe o nome, fazer um teste de admissão. Já
me considero admitido. Tenho um trabalho onde eu ganho dois salários mínimos.
Ali eu ganharei quatro salários. O teste é de datilografia e pedem trezentos toques
por minuto, quando posso oferecer oitocentos toques por minuto. Isto é muito
bom e meu pai ficará feliz comigo.
Eustáquio ainda se ofereceu para
levá-lo até à empresa, onde seria o teste, mas o jovem recusou, dizendo que era
mesmo ali e que já estava chegando. Voltando para o carro, Eustáquio
surpreendeu-se com um policial, em sua motocicleta estacionada logo ali,
multando-o.
Tentou dialogar com o guarda de
trânsito que foi taxativo:
- Você não está vendo que aqui não é
lugar de parada?
- Mas senhor guarda, não foi de má
fé, eu deixei até o alerta ligado e estava ajudando aquele cego atravessar a
rua. Coitado! Ele ainda está indo lá! O
senhor quer perguntar a ele?
Para surpresa de Eustáquio, o
policial lhe disse:
- Você me aguarda aqui. Eu volto já.
Vamos esclarecer isto, já.
O guarda de trânsito pegou sua moto
e partiu no encalço do cego que já ia a certa distância. Voltou logo, trazendo
o cego na garupa. Eustáquio, sem graça, desconcertado, diz ao cego:
- Moço, eu não esperava por essa
confusão, mas você disse até que vai dar uma grande alegria ao seu pai; que vai
fazer um teste de admissão aqui numa empresa perto, não é mesmo?
E, pasmem senhores! O pobre
ceguinho, todo sem jeito, tremendo dos pés à cabeça, a custo conseguiu
balbuciar:
- É. O senhor tem razão!
E
mais. Para o espanto do nosso amigo, diz ao policial:
- Papai, este moço foi quem me ajudou
a atravessar a rua!
A
esta altura dos acontecimentos Eustáquio se arrependera de ter mencionado a
história do teste. Foi liberado pelo guarda que não disse mais nada.
Passaram-se perto de quatro anos,
quando de certa feita, transitando pela Rua dos Caetés, em Belo Horizonte,
Eustáquio se depara com o ceguinho, de novo, querendo atravessar a rua. Foi
ajudá-lo e perguntou:
- Oi, ceguinho! Você por aqui? Você
foi bem no teste daquela vez?
O ceguinho emocionado,
reconhecendo-lhe a voz, perguntou-lhe?
- Posso dar-lhe dois abraços de
agradecimento?
- Pode. Mas por quê?
O homem cego respondeu exultante:
- Um por mim. Pelo bem que o senhor
me fez. Mais um pela minha mãe. O meu pai, como o senhor viu é aquele guarda de
trânsito. Ele todos os dias chegava em casa com um bloco de notas de multas de
trânsito cheio. Atirava-o sobre a mesa e dizia:
- O meu maior prazer é multar e o
que vocês merecem é isto: surrava-nos a todos, do mais velho ao mais novo,
inclusive a mim que o senhor conhece. À minha mãe ele surrava uma vez por
semana.
Sabe senhor, que desde aquele dia,
ele nunca mais nos surrou, nem à minha mãe?
Também nunca mais apareceu com o
bloco de multas. Por isso a minha mãe acha que o senhor foi o responsável por
este milagre.
Eu quero dar-lhe dois abraços de
agradecimento e quero o seu endereço para que eu, minha mãe, e meus irmãos
possamos ir à sua casa para agradecer-lhe.
Eustáquio estava absorto, pensando
nesta peça do destino. Esquivou-se de dar o endereço, lembrando-se da máxima do
Nazareno:
- O que faz a tua mão direita, que a
esquerda não saiba.
- Quando jejuares, lava teu rosto e
enfeita-o com teu sorriso para que não saibam da tua ação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário