14 de julho de 2013

As peças do destino - Crônica de fato real


As peças do destino

Geraldo Ribeiro de Sousa

          Você já atravessou cego na rua? Alguma vez parou o seu carro e desceu para ajudar uma dessas criaturas?
          Isto mesmo: aqueles de bengala branca, com olhos apagados, cinzentos, às vezes de óculos escuros, tateando na beira da calçada, tentando adivinhar quando é que o trânsito vai parar para poderem atravessar a rua sem serem colhidos pelos para-choques de veículos de motoristas apressados e pouco solidários com cegos e velhos, sem falar nos outros pedestres.
          Pois é. Um dia contaram-me o seguinte fato ocorrido em Belo Horizonte: Eustáquio transitava por uma das ruas mais movimentadas da capital, a Rua Platina, no bairro do Prado, próximo ao Quartel da Polícia Militar, quando viu na beira da calçada, do outro lado da rua, um jovem cego, meio aflito, tentando atravessar a Rua Platina no meio do intenso movimento. Nosso amigo não teve dúvidas. Parou o seu carro logo adiante, ligou o sinal de alerta e até se esqueceu de fechar a porta. Lá se foi a ajudar aquele cego a atravessar a rua. Na travessia trocou rápidas palavras com o cego que lhe dissera:
          - Hoje é um dia muito especial para mim. Apesar do trabalho que dou às pessoas como no caso do senhor que está me ajudando a atravessar esta rua, eu quero dar uma grande alegria ao meu pai. Vou até àquela empresa ali, e, mencionou-lhe o nome, fazer um teste de admissão. Já me considero admitido. Tenho um trabalho onde eu ganho dois salários mínimos. Ali eu ganharei quatro salários. O teste é de datilografia e pedem trezentos toques por minuto, quando posso oferecer oitocentos toques por minuto. Isto é muito bom e meu pai ficará feliz comigo.
          Eustáquio ainda se ofereceu para levá-lo até à empresa, onde seria o teste, mas o jovem recusou, dizendo que era mesmo ali e que já estava chegando. Voltando para o carro, Eustáquio surpreendeu-se com um policial, em sua motocicleta estacionada logo ali, multando-o.
          Tentou dialogar com o guarda de trânsito que foi taxativo:
- Você não está vendo que aqui não é lugar de parada?
- Mas senhor guarda, não foi de má fé, eu deixei até o alerta ligado e estava ajudando aquele cego atravessar a rua. Coitado! Ele ainda está indo lá!  O senhor quer perguntar a ele?
Para surpresa de Eustáquio, o policial lhe disse:
- Você me aguarda aqui. Eu volto já. Vamos esclarecer isto, já.
O guarda de trânsito pegou sua moto e partiu no encalço do cego que já ia a certa distância. Voltou logo, trazendo o cego na garupa. Eustáquio, sem graça, desconcertado, diz ao cego:
- Moço, eu não esperava por essa confusão, mas você disse até que vai dar uma grande alegria ao seu pai; que vai fazer um teste de admissão aqui numa empresa perto, não é mesmo?
E, pasmem senhores! O pobre ceguinho, todo sem jeito, tremendo dos pés à cabeça, a custo conseguiu balbuciar:
- É. O senhor tem razão!
E mais. Para o espanto do nosso amigo, diz ao policial:
          - Papai, este moço foi quem me ajudou a atravessar a rua!
A esta altura dos acontecimentos Eustáquio se arrependera de ter mencionado a história do teste. Foi liberado pelo guarda que não disse mais nada.
          Passaram-se perto de quatro anos, quando de certa feita, transitando pela Rua dos Caetés, em Belo Horizonte, Eustáquio se depara com o ceguinho, de novo, querendo atravessar a rua. Foi ajudá-lo e perguntou:
          - Oi, ceguinho! Você por aqui? Você foi bem no teste daquela vez?
O ceguinho emocionado, reconhecendo-lhe a voz, perguntou-lhe?
- Posso dar-lhe dois abraços de agradecimento?
- Pode. Mas por quê?
O homem cego respondeu exultante:
- Um por mim. Pelo bem que o senhor me fez. Mais um pela minha mãe. O meu pai, como o senhor viu é aquele guarda de trânsito. Ele todos os dias chegava em casa com um bloco de notas de multas de trânsito cheio. Atirava-o sobre a mesa e dizia:
- O meu maior prazer é multar e o que vocês merecem é isto: surrava-nos a todos, do mais velho ao mais novo, inclusive a mim que o senhor conhece. À minha mãe ele surrava uma vez por semana.
Sabe senhor, que desde aquele dia, ele nunca mais nos surrou, nem à minha mãe?
Também nunca mais apareceu com o bloco de multas. Por isso a minha mãe acha que o senhor foi o responsável por este milagre.
Eu quero dar-lhe dois abraços de agradecimento e quero o seu endereço para que eu, minha mãe, e meus irmãos possamos ir à sua casa para agradecer-lhe.
Eustáquio estava absorto, pensando nesta peça do destino. Esquivou-se de dar o endereço, lembrando-se da máxima do Nazareno:
- O que faz a tua mão direita, que a esquerda não saiba.

- Quando jejuares, lava teu rosto e enfeita-o com teu sorriso para que não saibam da tua ação. 

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